Cresci ouvindo meu pai contando “causos” e fatos sobre o Palestra Itália. Desde pequena aprendi tudo sobre esse glorioso clube, desde sua criação. Talvez eu fosse a única criança de 4 anos que soubesse quem eram Luigi Cervo, Vicenzo Ragognetti, Luigi Emanuele Marzo e Ezequiel Simone. A não ser que outros pais também ensinassem essas coisas aos filhos pequenos, como se fosse uma aula de música. Aliás, eu ficava sempre maravilhada, mesmo que, às vezes, não entendesse nada. Mas só de ouvir meu genitor falando com tanto amor e respeito, já me sentia admirada e hipnotizada.
Minha primeira grande lembrança é de uma comemoração de meu pai e meu avô pelo título Paulista conquistado em 1934, o primeiro e único tri de nossa história. Não sabia bem o que fazer, mas pulei junto, gritei, sempre com as mãozinhas pra cima e de punhos cerrados. Depois nos abraçamos, meu pai me pegou no colo, me jogou pra cima e disse: somos tri campeões! Eu nem sabia o que isso significava, mas fiquei muito feliz com o sorriso dele.
Não me lembro de minha mãe, mas ela gostava do Palestra. Papai me contou que quando soube da gravidez, ela disse: “essa garotinha será uma palestrina de primeira, pode ter certeza”. Meu pai ficou amuado, pois queria um menino, mas mamãe o acalmou: “eu sei que é uma menina e não adianta fazer essa cara. Mas ela terá tanto amor quanto você pelo Palestra”. Soube que quando ele me viu pela primeira vez, não conseguiu segurar e emoção e me enrolou num manta do Palestra, feita pela minha avó.
Aos 6 anos, pedi que ele me levasse pra ver o Palestra jogar. Ouvia as conversas longas e emocionadas que meu avô e ele mantinham e queria sentir a mesma coisa. Mas ele disse não, que estádio não era lugar para meninas. Fiquei brava, chorei de raiva. Mas estava decidida. No dia seguinte, perguntei pra ele novamente. Papai me olhou, riu e depois disse: vá tirar as roupas do seu primo agora. Mas ele não mudou de idéia.
Continuei a ouvir os jogos pelo rádio, não perdia nenhum. Tentava imaginar como eram o campo, as redes do gol, a bola, as chuteiras e camisas dos jogadores. Mas toda vez que tinha jogo, me amaldiçoava por ser mulher. Chorava em silêncio, quietinha no meu canto e esperava meu pai chegar para me contar como foi ver de perto. Como eu adorava aqueles relatos! De certo modo, me sentia lá também.
Em meados de 1940, comecei a perceber algumas coisas estranhas nas notícias dos jornais e nas conversas inflamadas de meu pai e avô. Estavam tentando pegar o nosso estádio! O Palestra teria que mudar de nome. Quando li aquilo chorei muito, amassei o jornal e corri pela casa procurando consolo. Não aceitava a idéia de chamar o meu amado clube por outro nome. Meu pai me disse que tudo era culpa da guerra e não conseguiu falar mais nada. Mas entendi tudo olhando aqueles olhos marejados. Comecei a imaginar canhões apontados para o campo e os jogadores enfileirados. Fiquei desesperada.
Em 1942, não houve como remediar a situação. O Palestra Itália virou Palestra de São Paulo. Quando papai me disse, tentei ser forte e consolá-lo, pois estava realmente triste. Eu disse que não importava o nome, continuaria sendo o nosso clube tão amado. Mas o que me revoltou mesmo foi a atitude de um tal São Paulo Futebol Clube, clube recém saído das fraldas, que tentou se aproveitar do Decreto-Lei do Getúlio para tomar posse do nosso patrimônio, comprado com recursos próprios. Perguntei ao meu pai como isso era possível e ele apenas disse que certos clubes não tinham honra, muito menos escrúpulo. E como se não bastasse, o novo nome do Palestra não foi aceito. Papai gritava pela casa: “mas Palestra tem origem grega! Infames!” E eu repetia de forma veemente cada palavra. Até que no dia 14 de setembro de 1942, o Palestra de São Paulo virou Sociedade Esportiva Palmeiras. Olhei a notícia no jornal, meu pai ao lado bufando de ódio, mas de repente, sua expressão mudou, ficou mais leve. Então ele virou para mim e disse: “minha filha, o Palestra Itália continuará sempre no Palmeiras, jamais se esqueça disso. E o Oberdan continuará jogando de azul”. Chorei com ele durante um longo tempo e perguntei se algum dia eu iria ver a camisa e as defesas de nossa Muralha. Ele não me respondeu.
A semana passou rapidamente, mas jamais imaginaria que o dia mais feliz de minha vida estava tão próximo. Estávamos todos ansiosos porque o Palestra, agora Palmeiras, disputaria o título do Paulista contra o time invejoso. A atmosfera era toda diferente pelas circunstâncias, e isso nos deixava ainda mais apreensivos. E no dia derradeiro, 20 de setembro de 1942, papai acordou sorridente e depois de almoçarmos a macarronada da vovó, ele olhou para mim e disse: “Chegou o seu dia. Você verá a Arrancada Heróica”. Naquela hora, minhas pernas tremeram, meu coração disparou, abri e fechei a boca várias vezes sem saber o que dizer, e meus olhos brilharam tanto que pareciam duas estrelas. Eu veria o Palestra-Palmeiras! Finalmente, meu maior sonho seria realizado! Quando o choque passou, comecei a chorar e pulei no pescoço de papai. Ele me abraçou como nunca fizera antes.
E lá estávamos no Pacaembu. Que lindo dia, que sensação maravilhosa. Antes de entrarmos, papai colocou as mãos sobre meus ombros e disse: “essa é a segunda casa do Palestra”. Fiquei estupefata quando entrei e vi todos aqueles torcedores. Tentei fotografar mentalmente cada lugar, cada pedacinho do estádio. Muitas pessoas me olhavam e eu apenas sorria. Papai estava radiante. Esse também era o sonho da vida dele, apesar de nunca tê-lo admitido.
O Palmeiras estava prestes a entrar em campo. Eu não conseguia ver porque havia muita gente atrapalhando minha visão. Observando meu desespero, papai me pegou rapidamente e colocou-me nos ombros. E eu pude ver o meu goleiro, os meus jogadores, a bandeira nacional. Essa é a imagem mais linda que tenho em minha mente até hoje. Que momento mágico! O estádio explodiu em aplausos diante de cena tão emocionante. Mas notei que os semblantes dos jogadores estavam enérgicos, duros, demonstrando ódio. E foi assim que jogaram a partida, dando tudo de si, suando sangue!
O eterno Palestra abriu o placar aos 20 minutos, com Cláudio, mas pouco tempo depois o time sem caráter empatou com Waldemar de Brito. Ainda antes do apito ser ouvido, Del Nero colocou o Palmeiras na frente novamente, e assim terminou o primeiro tempo. Na segunda etapa, logo aos 14 minutos, Echevarrieta faz 3x1 e o Pacaembu entoava uma só canção, “Palestra, Palmeiras!” Isso fez meu coração bater ainda mais forte. Nossa origem não seria esquecida jamais. E aos 19 minutos, não mais aguentando jogar contra um time verdadeiramente honrado, os inimigos fugiram de campo, após a marcação de um pênalti a favor do Palestra. Todos vaiaram aqueles covardes. A humilhação ficaria na história para todo sempre.
A goleada seria maior, mas nada mancharia aquele episódio, o resultado já era suficiente para que ninguém esquecesse esse dia. Chorei quando vi as lágrimas deixadas no campo pelo Oberdan. Eu vi, eu sei que vi. Exultei com a conquista de mais um título. Perdi a voz gritando “Aqui é Palmeiras!”. Foi o dia mais feliz da minha vida. O dia em que o Palestra morria líder e o Palmeiras nascia campeão!
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O momento pode não ser o melhor, mas jamais podemos nos esquecer dessa data tão marcante. Hoje é o dia do Palmeiras, dia do clube que possui um passado ilibado e pode se orgulhar disso. A história não pode ser esquecida. Os momentos mágicos devem ser contados e recontados. Não olvide de seu orgulho, palestrino. Aliás, não olvide de seu orgulho palestrino!
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